Jerry Dávila
Para pesquisador norte-americano, estratégia de aproximação desenvolvida pelo Itamaraty é fundamental — mas é preciso novos passos para consolidá-la
As iniciativas de aproximação do Brasil ao continente africano durante o governo Lula não são inéditas na história brasileira e se remetem à política do governo Geisel (1974-79), na ditadura militar. É o que afirma o historiador brasilianista Jerry Dávila, em livro recém lançado no Brasil — Hotel Trópico: Brasil e o desafio da descolonização na África (Editora Paz e Terra, 336 páginas, R$ 47,50).
O especialista na relação Brasil-África da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, dedica-se aos estudos brasileiros há quase dez anos e, do Rio de Janeiro, conversou com o Opera Mundi sobre seu segundo livro. O primeiro, O diploma da brancura foi publicado em 2006 sobre a mudança do perfil racial do Brasil.
Para Dávila, os diplomatas brasileiros, na década de 1970, apostavam nas relações com novos países africanos imaginando que a África independente seria uma nova fronteira e que o Brasil se expressaria como uma potência mundial. Após um período de vácuo nas relações entre Brasil e África, os laços voltaram a florescer, mas ainda são vulneráveis e não auto-sustentáveis, critica Dávila.
E hoje a China se apresenta como a principal concorrente do Brasil no continente, podendo até mesmo “expulsar a presença brasileira”. Segundo o historiador, para afirmar sua influência nos organismos multilaterais, a diplomacia brasileira tem como principal estratégia costurar coligações com países africanos e enfatizar as relações Sul-Sul. Foi nessa área que o governo Lula se destacou, analisa.
A aproximação entre o Brasil e a África não é recente. Em seu livro, o senhor destaca que os encontros brasileiros com o continente já vêm de longa data, desde o período colonial. Como se deu este esforço de proximidade no período da descolonização africana?
Essa experiência de aproximação teve iniciativa durante o governo Lula, mas no seu conteúdo e na sua retórica, são muito parecidas às iniciativas do governo Geisel na década de 1970 o que não parece ser uma comparação confortável, pois era no período da ditadura militar. E o governo Geisel se fundava na experiência do governo de Jânio Quadros.
O que apresento no meu livro é que no pensamento sobre a formação étnica brasileira, melhor sintetizado por Gilberto Freyre, o Brasil teria uma vocação natural para essa aproximação africana, pelo fato de ter uma forte presença democrática e cultural. Por dentro dessa construção freyreana, o vínculo com a África foi feito por portugueses havendo uma relação triangular Brasil-Portugal-África.
Por um lado, os brasileiros apostavam nas relações com novos países africanos, imaginando que a África independente seria uma fronteira e o Brasil se expressaria como uma potência mundial. O presidente Geisel encontrava-se numa posição extremamente controversa, ao ser o único governo ocidental a reconhecer o governo independente de Angola.
Como o Brasil via a África no período da descolonização de 1950 a 1980?
Nas décadas de 1960 e 1970, não havia informação sobre a história do continente, a África contemporânea era uma incógnita para os brasileiros. Olhava-se para a África imaginando o passado brasileiro. A percepção que os intelectuais tinham era que indo para a África encontrariam as raízes da cultura brasileira, o verdadeiro Brasil no litoral ocidental africano, gerando uma sensação de unidade cultural entre as duas margens do Atlântico.
Era uma visão enviesada e deturpada do Brasil?
Era uma projeção que se tinha. Os líderes dos novos países africanos recebiam cordialmente os brasileiros, mas tinham interesses totalmente distintos e estavam tentando costurar a sua independência e desenvolver seus países.
A iniciativa de aproximação foi logo frustrada pela irrupção das guerras nas colônias portuguesas em Angola, seguida pelas guerras em Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique. E a busca pela identidade brasileira do outro lado do Atlântico se complicou, pois dentro do pensamento freyreano, era a ação portuguesa que teria criado o Brasil como país miscigenado. O instinto do Brasil era apoiar Portugal nas guerras descolonizadoras. A política brasileira em relação à África ficou dependente da posição portuguesa e isso gerava ressentimentos por parte dos líderes dos países africanos. Como os brasileiros, que se sentiam africanos por causa do candomblé, eram os mesmos que defendiam a questão portuguesa?
Essa experiência foi frustrada com desencontros. O curioso era que Portugal era um país isolado e não tinha peso econômico para o Brasil. Os militares brasileiros que entraram no governo apoiaram fortemente Portugal.
No Rio de Janeiro, havia militantes nacionalistas da Guiné Bissau e angolanos que foram presos e interrogados com a presença de agentes portugueses. Muitos foram figuras importantes, como por exemplo Fidelis Cabral que era da Guiné e estudava Direito no Brasil. Ele virou o primeiro ministro da Justiça em Guiné e foi preso no Brasil em 1964.
Durante o governo militar de Costa e Silva, a marinha do Brasil participou de manobras conjuntas com a marinha portuguesa no litoral de Angola, que era teatro de guerra, tamanha a identificação com a causa militar portuguesa.
Essa orientação a favor de Portugal fechou as portas do Brasil para o resto da África, o que começou a ser uma preocupação do chanceler Mário Gibson Barboza. Naquele período, a causa das guerras portuguesas na África estava perdida e os países africanos queriam que o Brasil usasse a sua influência frente ao governo português para colaborar numa solução negociada para a situação colonial. Assim, as portas das economias africanas se abririam ao Brasil que teria o benefício econômico.
Por exemplo, durante a crise do petróleo, um dos principais produtores de petróleo consumido no Brasil era a Nigéria e havia a possibilidade de fazer uma troca mais sofisticada de bens entre petróleo nigeriano e produtos manufaturados brasileiros.
O reconhecimento de Angola foi para o Brasil a última chance que seria um novo passo para a política externa brasileira que, na altura se baseava numa posição romântica de vínculo cultural. Mas a guerra civil começou logo depois da independência de Angola e fechou a possibilidade imediata de intercâmbio comercial. Mesmo assim, abriu caminho para o intercâmbio com outros países. Até 1984, 8% das exportações brasileiras iam para os países africanos.
Após um período de vácuo nas relações entre Brasil e África, como se deu essa reaproximação?
Durante os governos do Sarney, Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique, houve uma redução do investimento na política externa nos países africanos. Os custos para sustentar as embaixadas brasileiras eram muito altos.
A renascença da política no governo Lula se deve à própria cultura dentro do Itamaraty. Diplomatas, como Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, que faziam parte de uma geração que, na década de 1970 trabalhou na base da política externa do governo Geisel. Essa continuidade dentro do Itamaraty facilitou a volta contemporânea para a África. Caso contrário, Lula estaria começando do zero, sem pessoas que entendessem como desenvolver essas relações.
Hoje o peso é grande dos representantes de países africanos nos órgãos multilaterais como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OMC (Organização Mundial do Comércio) e costurar coligações com os delegados de países como Gana, Togo, Nigéria, Tanzânia, Angola e Moçambique é uma das estratégias mais eficazes da diplomacia brasileira para aumentar a sua influência.
Um dos objetivos fundamentais da política externa brasileira é conseguir a vaga no Conselho de Segurança da ONU e a melhor estratégia é construir coligações procurando o apoio nas relações Sul-Sul. Foi nessa área que o governo Lula realmente se destacou.
Qual é o lugar da África para o Brasil hoje?
Durante as décadas de 1960 e 1970, essa aproximação dependia absolutamente do Estado. Quando o governo Geisel ou Jânio Quadros investiam nessas ações, as empresas privadas seguiam e floresciam toda uma gama de vínculos. Mas quando a iniciativa do governo perdia força essas relações não eram auto-sustentáveis.
A grande pergunta hoje é se essas relações estão orientadas de forma auto-sustentável. Mais cedo ou mais tarde, o enfoque do governo pode não ser mais os países africanos. Será que o intercâmbio comercial, a troca de tecnologia, a colaboração mútua, o incentivo ao ensino, será que tudo isso continua sem o impulso do governo? A resposta só virá mais a frente.
Há agora um novo fator nessa relação com a África que é a China. Existe uma concorrência brutal por parte de empresas chinesas concorrendo nas licitações para construir edifícios, projetos de engenharia básica e de mineração. Eles estão conquistando espaços que eram tradicionalmente reservados para as antigas metrópoles, os antigos colonizadores.
A China pode ser uma grande concorrente do Brasil na África? Isso põe em xeque a consolidação dos laços Brasil-África?
A China já é a principal concorrente. A presença chinesa na África hoje em dia é maior que a presença brasileira. Esse é um dos fatores que estão em jogo no momento. Essa onda dos chineses nos países africanos pode expulsar a presença brasileira. Mas por outro lado, em certas áreas como engenharia e petróleo, o Brasil está bem estabelecido. Essas áreas de cooperação como agricultura, saúde e educação com o novo acordo ortográfico são possibilidades nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Há espaços de oportunidade que aos poucos estão sendo desenvolvidos e que o Brasil concorreria muito bem com os chineses.
Como define o cenário em que vive o Brasil hoje referente aos países africanos? Esta relação já está consolidada?
O Brasil vive um momento germinal, embrionário, e por isso continua vulnerável. Essa relação não se consolidou, estamos num momento de tentar dar um segundo passo, os primeiros passos já foram dados várias vezes. O principal é que essa relação se torne auto-sustentável e que não dependa da iniciativa do Itamaraty. A diplomacia impulsiona, dá auxílio às empresas e ao intercâmbio educacional. Mas se o Itamaraty se ausenta será que a coisa fica em pé? Acho que esse é o desafio.
Fonte: Outras Palavras